30/08/2007

Escolhas

Quis acabar com o embaraço público da minha preguiça - tantos dias exposta e aninhada em ausência – e tentei escolher um poema, um texto. Mas não me apetece ler para escolher.

Imaginei, depois, estender frases sobre um tema qualquer:

actual, surrealista, ancestral, futurista;
marítimo, idiota, legítimo, patriota;
exagerado, anedótico, moderado, caótico;
vivido, falado, sentido, pensado;
religioso, espiritual, curioso, banal;
desportivo, gastronómico, apelativo, económico;
fantástico, evitável, sarcástico, criticável;
inocente, internético, indecente, frenético;
fatalista, leve, moralista, breve;
profundo, aéreo, meditabundo, venéreo;
angélico, sexual, gaélico, musical;
arrogante, guerreiro, celebrante, derradeiro.

Mas não me apetece imaginar qual escolher.


Hoje – não me levem a mal - escolho o silêncio.

[final]



Norah Jones - Sunrise

25/08/2007

A Poesia e a Dona Prosa


Afastei-me de ti para ir buscar uma cerveja ao frigorífico e, de repente, senti um ataque do que me pareceu ser Poesia.
Era mais massivo que os habituais: os que apenas interrompem caminhos que ando ou coisas que faço, com maior ou menor tranquilidade.
Foi fulminante. Insinuou-se-me como uma baforada de ópio saída do vento e, no segundo a seguir, transformou-se num fogo de mil palavras em artifício. Brilhavam muito, todas com as letras a piscar, e acabaram a sereiar-me aos ouvidos: “Somos tuas, todas tuas… Que mãos bonitas, quentes! Vem!”

Mas algo não batia certo: tinha as mãos geladas da garrafa. Resisti e para me proteger, para não ficar preso, corri rápido para dentro.


e olhei-te
vi o teu sorriso
encostei o meu corpo ao teu
a música dos teus olhos é tão linda que comecei a dançar-te de novo


Depois de um novo sossegar, quando o pensamento se sacudiu outra vez percebi que não tinha sido a Poesia a atacar-me. Ela não se manifesta assim: fingida, vaidosa, orgulhosa do brilho rápido e certa de conquistas fáceis.
Era a Prosa, disfarçada.


tu, meu amor, tu és a Poesia
porque de ti não quero fugir
porque bebo com sede o sal da tua boca
porque fico com mais sede depois
porque somos um sabendo que somos dois
porque somos livres

[os amantes são livres porque são cativos apenas do que não tem grades]

nós, meu amor, nós somos a Poesia


Vá, vá, Dona Prosa, tente mais tarde.
Eu até simpatizo consigo mas porte-se bem.
Não seja chata...


Broken Social Scene - Pitter Patter Goes My Heart

21/08/2007

Com ou sem cerveja

Bastava-nos amar. E não bastava
o mar. E o corpo? O corpo que se enleia?
O vento como um barco: a navegar.
Pelo mar. Por um rio ou uma veia.

Bastava-nos ficar. E não bastava
o mar a querer doer em cada ideia.
Já não bastava olhar. Urgente: amar.
E ficar. E fazermos uma teia.

Respirar. Respirar. Até que o mar
pudesse ser amor em maré cheia.
E bastava. Bastava respirar

a tua pele molhada de sereia.
Bastava, sim, encher o peito de ar.
Fazer amor contigo sobre a areia.


Joaquim Pessoa



The Kooks - Seaside

17/08/2007

Indiscrição

entrei pelos teus olhos
para ver como estavas

sacudi nuvens
lavei mentiras
arejei a confusão
sequei lágrimas
fiz café para o teu sono

deixei-te no coração
mais uma turquesa
para a tua colecção

e saí

[lembrei-me do dia
em que disseste
que não sabia cuidar de mim]

táxi!

siga a maresia
por favor


Coldplay - Fix You

14/08/2007

Sobre o post anterior...

Pois é, João Fortunado, como disse a Nela, são os sons que (me) seduzem e cativam nestas criações genuínas do Jorge de Sena. Mas não é só a musicalidade. Como neste caso, o meu preferido dos “Quatro sonetos a Afrodite Anadiómena:

III

URÂNIA

Purília emancivalva emergidanto,
imarculado e róseo, alviridente,
na azúrea juventil conquinomente
transcurva de aste o fido corpo tanto...

Tenras nadáguas que oculvivam quanto
palidiscuro, retradito e olente
é mínimo desfincta, repente,
rasga e sedente ao duro latipranto.

Adónica se esvolve na ambolia
de terso antena avante palpinado.
Fimbril, filível, viridorna, gia

em túlida mancia, vaivinado.
Transcorre uníflo e suspentreme o dia
noturno ao lia e luçardente ao cado.

Jorge de Sena



Este, e os irmãos, foram discutidos por académicos (incluindo matemáticos) e sujeitos a intermináveis horas de investigação por mentes iluminadíssimas. Foram atirados para inúmeras teses de mestrado e doutoramento. Colaram-lhes
variadas conclusões e lançaram mais ideias para... futuras conclusões. E só os deuses do fastio sabem o que lhes fizeram mais...
Não é que isso seja pecado: também gostei de brincar com 'lego', coleccionei cromos do Benfica, bandeirinhas de todos os países e excitei-me com a física quântica (e matrizes, adorava cálculo matricial... ah! as matrizes...).
Mas, que culpa tem o Jorge de Sena?
Pois. Nenhuma...

No "Colóquio sentimental em duas partes", continuo a descobrir/inventar muitos diálogos. E divirto-me.

Se algum é parecido com o que ele nos deixou, não sei; mas não me parece que Jorge de Sena ficasse triste com os meus eventuais adultérios... Se há promiscuidade saudável, é a da palavra livre - que cria sons, cores e imagens sempre diferentes - que não está sujeita ao peso dos conceitos e deixa mais leve a imaginação e os sentidos. Permitindo viagens diferentes. Não é assim que é, afinal, no país da Poesia?

Para mim, estes sons pintados por Jorge de Sena são bonitos de ler. S
empre que olho para eles. Só isso.


Um dia bom para todos.




Nick Cave - (Are You) The One That I've Been Waiting For?

12/08/2007

Da minha longa noite de sábado...

“Colóquio sentimental em duas partes”

I
Tronchela adúvia corimata, que tuestes dilasta anquinudante,
furiça astria dova, retinuta, e quis? Nonória. A tutimão periva
a turidarta influva. Azis? Nocónia. Dimirita, aluina, dúria - oh
comisalva apene. Friscórida. Buliva? Nem ninúria. Que dívia alperidasta clido! Flara:
- Dumeste andorta oroladiara?
- Clande.
- I tru laridolosta zanque?
- Diata.
- Dileste me tisalva.

Aliara doriçara, tigorimenos. Erclusa atrisca duridanta,
merifluamos róvia. Diloguidermos:
- Verida turimana...
- Ciciarva...
- Ablera, ablera, diata.
- Anstria...
- Narva, adiarda, funje...
- Cerida!
Estuta. Nonôra dimirata.


II
Anaridassa, contrimat atuva, anadiramo trévia palpirada. Dimitidana flurionca fliva. Mês conquiritanta nim puore avri discrote, undiva aspranca fara, alima gêntia assunta etrétia i
vanta. Diloguidermos:
- Memorta oroladiara?
Nunda siventa ura pradona.
- Ovi trasida medirenta?
- Niata.
- Clito...
- Niata ciciarva anstria.
Arnuda transparara instívio. Impossidanta. Despridova, despridima, deses cara. Anfúria?
Estruta dimirasta.

Jorge de Sena


Lou Reed - Satellite of Love

05/08/2007

Da minha tarde...

Quando pela primeira vez
ouvi falar de uma história de amor,
comecei a procurar por ti
sem saber o quanto estava cego.

Definitavamente os amantes
não se encontram
em algum lugar.

Desde o início estiveram
um dentro do outro.

Jalālu'd-din Rūmī




Joanna Newsom - Clam, Crab, Cockle, Cowrie

03/08/2007

Crónicas de um verão no hemisfério norte

Levantei-me devagar. Sem o habitual movimento rápido. "Um flic-flac muito jeitoso para os 40", disse alguém um dia, para descrever aquilo a que chamo apenas "saltar da cama".


1º pensamento do dia: “sumo gelado de manga”;


2º pensamento do dia: “a casa de banho está perto da camisa de ontem” (a dislexia ataca-me forte ao acordar; não confio na dualidade esquerda/direita);

3º pensamento do dia: “o hoje passa bem sem os meus pensamentos; e eu também.”


Necessidades serenadas, reparei no exterior que se encostava insinuante a uma janela toda aberta e atravessei-o com o pescoço.
A meia manhã estava tranquila de sol e espreguiçava-se de agosto, com um pouco de luxúria. Pessoas passavam aqui e ali, ainda um pouco embaciadas pelo meu esquecimento de passar água na cara. O barulho dum carro mais excitado tentou escorregar para dentro dos meus ouvidos e atirei-o para o vidrão, lá em baixo, com o olhar. Os pombos interromperam o sexo - que insistem em fazer na minha varanda - e fugiram com um uivar alado de surpresa.

Não foi preciso ir à internet para verificar que o mundo continuava a existir no mesmo local que eu. Fiquei satisfeito com isso. Agradeci à Vida e fui passear com ela por um bocado sem tempo. A sós.


[Estava quente lá fora mas estava fresco cá dentro.
Foi-nos dado à nascença, e de graça, uma espécie de ar (não) condicionado, interno e privado, que nos deixa na temperatura ideal. E não precisa de comando.
Uma vez mais fiquei pasmado e quieto, como uma criança que sempre se surpreende com o orvalho que a noite deixa para a luz beber.]


Depois, as necessidades voltaram: deu-me fome. Muita fome.

Não aquela fome que me faz pensar nos estômagos como peixinhos estúpidos de aquário, com as boquinhas abertas para cima, à espera dos floquinhos que fazem sombrinhas na superficiezinha; e que se satisfazem após pequenos 'abrir e fechar' de mandibulazinhas (se é esse o nome das coisinhas...); e se sacodem numa espécie de orgasmozinho gluglu; e vão depois guelrear às voltinhas; e nadar mais uns circulozinhos, interrompidos apenas para ligeiros... arrotinhos.

Não.

Hoje, o meu estômago estava com cara de piranha do amazonas e com os dentes todos à mostra. Quase me assustou e decidi então apressar-me até ao outro lado da casa, onde guardo os sólidos. Mas bruscamente, por instinto, decidi voltar atrás e abrir as colunas que não deixavam passar a música. Porque sim. E até para mostrar à dentuças que um ser humano pode ser bravo e indomável. Que esperasse...

Power on. Fui comer.
Com um sorriso de manguito para todos os monstros deste mundo.


Não podia ainda pressentir as aventuras que me esperavam nas paisagens de um dia que de 24 só teve os anos que durou…



(continua. não sei quando ou em que forma. ou se volto inteiro. mas sei que são aventuras. é feio ser mentiroso!)




R.E.M. - Nightswimming

02/08/2007

Confidência(s)

Diz o meu nome
pronuncia-o
como se as sílabas te queimassem os lábios
sopra-o com a suavidade
de uma confidência
para que o escuro apeteça
para que se desatem os teus cabelos
para que aconteça

Porque eu cresço para ti
sou eu dentro de ti
que bebe a última gota
e te conduzo a um lugar
sem tempo nem contorno

Porque apenas para os teus olhos
sou gesto e cor
e dentro de ti
me recolho ferido
exausto dos combates
em que a mim próprio me venci

Porque a minha mão infatigável
procura o interior e o avesso
da aparência
porque o tempo em que vivo
morre de ser ontem
e é urgente inventar
outra maneira de navegar
outro rumo outro pulsar
para dar esperança aos portos
que aguardam pensativos

No húmido centro da noite
diz o meu nome
como se eu te fosse estranho
como se fosse intruso
para que eu mesmo me desconheça
e me sobressalte
quando suavemente
pronunciares o meu nome

Mia Couto




Dead Can Dance - Desert Song