09/11/2007

O poeta do digital voice recorder

Tem uma memória excelente.

Alguns dizem até que é prodigiosa e mágica, pelo espanto que pode causar.

Contam-se histórias de como narrou as cores e os factos mais relevantes do baptizado da irmã, tinha ele quase dois anos de idade. Ou da forma como se lembrou dos sinais que o ombro esquerdo da sua amada teria quando nascesse e os apontou um a um, numa noite brilhante de verão, designando a constelação escolhida com o nome que a menina viria a transportar. [Mais tarde, quando questionado sobre tamanha precisão, disse que a memória tem muito a ver com o amor e só um pouco com o tempo, nada havendo de transcendente nesse episódio.]

Às vezes, nos dias em que está mais falador ou com o coração aquecido pelo vinho da felicidade, relata passagens do nascimento de uma criança, dum voo perigoso de um pássaro anónimo, do gemido que a terra faz quando a neve tapa o sol ou da canção de uma onda naufragada num qualquer mar sumido, com facilidade e minúcia perturbadoras.

Foi com surpresa que o encontrei sentado numa esplanada a falar para o que parecia ser um gravador de voz digital. Parou, continuou, parou outra vez. Sacudiu o cabelo para trás com um torcer brusco do pescoço e agarrou-se à sua velha argola puxando a orelha com tal intensidade que receei vê-lo cair da cadeira. Nem o mar, lá atrás, fazia tantos esgares. As suas feições variavam entre uma eventual extrema satisfação e um provável quase desespero enquanto ia carregando agitadamente nos botões do pequeno aparelho.

Talvez tivesse tocado por engano no de pausa porque de repente fez uma cara de menino atrapalhado e descobriu o meu olhar curioso. Acenou-me um sorriso e fez um gesto rápido convidando-me a aproximar.

Conhecemo-nos e somos amigos há muito. Não precisamos trocar cumprimentos formais, nem falar de tempos gastos ou das últimas novidades do mundo e dos homens para nos sentirmos confortáveis. Nunca tivemos necessidade de pôr a amizade em dia. Nasceu quando nos conhecemos e continuará assim, existindo ao sabor dos dias e ao acaso das noites, como um rio que não se preocupa com a paisagem para lá do próximo meandro e olha contente para as margens actuais porque o destino é agora.

Esqueci-me de contar que o meu amigo escreve. A poesia é o seu forte, dizem. Ele não se considera escritor e eu, como seu amigo, respeito-lhe a vontade e chamo-o apenas de artesão de impressões. Refere-se a essa actividade só a espaços, quando partilha pormenores do que sente nos momentos em que nele as palavras desenham aromas e cores. Um dia disse-me que escrever é apenas emprestar música a esses instantes e usufruir da melodia. Eu aprendo muito com o meu amigo e acho que o percebo. Daí, raramente falamos disso.

Fui ter com ele e não contive a curiosidade. Perguntei-lhe porque usava aquele dispositivo e de uma forma tão inquieta. Afinal, era senhor de uma memória intemporal, por certo seria dispensável.

Sorriu-me e depois ficou muito sério. Respondeu que o comprara porque se esqueceu de registar durante toda uma semana os poemas que vivem dentro de si e tinha encontrado a sua mulher e amante de sempre muito triste, na noite anterior. Sentiu-se culpado porque temia que essa fosse a causa dos seus belos olhos castanhos estarem tão pequeninos.

Estava assustado, o meu amigo. Achava que podia ter a memória cansada. O gravador que descobriu enquanto deambulava pelas ruas, tentando esquecer qualquer lembrança da falha de memória, trouxera-lhe algum conforto e a esperança de superar aquilo que ele receava ter sido um primeiro ataque de alzheimer.

Prometi-lhe que a partir daí iria telefonar duas vezes por semana, durante toda a vida, para o recordar de escrever a poesia que o seu amor aguarda, não fosse ele esquecer-se de mudar as pilhas. Pareceu gostar da ideia. Vi o começo de um assobio nos seus olhos.

Separámo-nos depois de o lembrar de pagar as cervejas. Ele riu, com um gargalhar de criança já despreocupada. E disse obrigado enquanto esticava as pernas e espreguiçava os braços todos para trás. [Obrigado, eu. É bom sossegar um amigo.]

De longe, quando me virei, vi-o na praia bem perto do mar. Não distingui nenhum gravador de voz digital nas suas mãos mas pude ver que observava os saltos de um golfinho azul para lá do rebentar das ondas e estou certo que um dia vou saber o que ele lhe estava a contar.



Dire Straits - Why Worry

58 impressões:

joni du lac disse...

O seu melhor post na minha opinião.Excelente

cybermoon disse...

uma história linda
LOL quero mais
bom fds

Ka disse...

É bom ter assim amigos como tu...que decansam :)

Beijo e bom fim-de-semana

ps - Este post é maravilhoso!

Paulo F disse...

eh pah isto estah muita bom.....tambem kero mais........tassebem

bookhaven disse...

é mesmo bom sossegar e ser sossegada por ti.

beijo(s):

http://www.youtube.com/watch?v=8ydQ6NfxjbQ

sobre o post falamos depois :)

j.fortunado disse...

a gente já está habituada a chegar e quando há post novo ser surpreendido...não é todos os dias mas vale sempre a pena dar uma espreitadela.quero desejar um bom fim de semana e dizer que eu e os meus 2 colegas aqui do escritório agradecemos muito o seu conto.é muito bom e uma espécie de sossego para o fim do dia.
abraços

xá das 5 disse...

fascinante
ainda diz que não gosta de prosa como afirmou num post antigo? hahahaha
bom fim de semana

zé dos blogs disse...

não sei dizer quanto gostei deste post
why worry quando se tem amigos assim.abraço até breve

Vanessa Lourenço disse...

Deleitei-me a ler este post como uma criança se deleita a olhar e ouvir atentamente o contador de histórias. Cada palavra, virgula, foram absorvidos pela minha deliciada atenção. Obrigada, mesmo mesmo. Um beijo.*

na estranja disse...

não sei se gosto mais da tua poesia ou da tua prosa...que bom que é ler português assim
bom fim de semana!

sydneyland disse...

i was at this concert...long time back...good memories

have a good one Jai
take care mate

estrelita disse...

lindíssimo obrigada :0)

Maria P. disse...

Muito bem.

Bom fim-de-semana.
Beijinhos com cores de Maio:)

MsBambi disse...

Adoro contos e este é uma verdadeira pérola.
Um excelente fim de semana!

ana disse...

Artesão de impressões é uma expressão feliz e um nome que te quadra muito bem. Nunca largues esse ofício. Gostei MUITO.

o tio samuel disse...

sou ainda novo por aqui mas já fiquei fan depois de ler este conto.espero ter o prazer de ler mais.
magnífico!
abraços

Luis Saraiva disse...

para ler e reler devagar...demasiado bom para comentar.abrço

Luis Saraiva disse...

ao tempo que não ouvia isto...

Susana Júlio disse...

Entre os limites da realidade e da vstidao da memória, entre um recanto poético da nossa alma e o sonho do que queremos ver "acontecido" nascem assim palavras belas como o salto de um golfinho, inconstantes na sua forma de se dar...mas sempre fiéis à imagem poética que nos ofereces.

Simplesmente belo. De facto, a Natureza oferece-nos VERDADE.

Beijos aqui da su!

Tulipa Branca disse...

que bom começar a semana com amigos que nos sossegam
xoxoxo

Laura disse...

Muito lindo, muito belo, cheio de encanto...

Vim atrás do aventureiro
que se atirou na minha
jangada, dar-lhe um jinho
e deixar um obrigada...

Da, laura, nina das résteas...nina não, dos 55...

Teté disse...

Belíssimo texto, Eduardo!

Os receios do teu amigo de estar a perder a memória devem ser infundados, embora às vezes a idade atrapalhe um pouco os neurónios dela encarregues. E outras vezes, é precisamente o contrário, parece que com o passar dos anos a pessoa vai alimentando cada vez mais o seu cérebro com novas histórias e imagens, como se ele fosse uma enorme biblioteca...

Fizeste bem em sossegar o teu amigo!

Um dia BOM para ti!

Unknown disse...

mais um belo e excelente texto.

uma boa semana.

AmSilva® disse...

é incrivel como consegue meter as palavras nso sitios certos para dar estas frases...

e a musica, obrigado, muito obrigaod

Kátia disse...

Bela partilha.Tomara ter muitos ainda para nos presentear.
Bom retornar...e a música soube bem.
Bons sonhos pra ti.

Gi disse...

Obrigada pela visita e pelas palavras. Vir aqui retribuir-te a gentileza foi uma mais valia para mim. Encantou-me o teu texto. Esta memória digital . Quantas vezes não nos esquecemos de pequenas coisas que nos fizeram felizes. Momentos. Quantos textos, quantos poemas poderiam ter lugar. Não há memória , há um auxiliar :)

Um beijinho, volta sempre.
Noite feliz

loucura ilusória disse...

excelente descoberta
vou ficar atento depois de tudo o que li

Espaços abertos.. disse...

Tudo aqui se enquadra perfeitamente,palavras,imagens...um rnquadramento perfeito.
Bjs Zita

Espaços abertos.. disse...

Podes linkar sim,também o vou fazer porque assim torna-se fácil os caminhos..
Bom fim de semana
Bjs Zita

' Claudjinha disse...

AH! agora percebi. já me estava a assustar...eheh. obrigada :D

a pessoa que dizia 'isso agora não interessa nada' era a Teresa Guilherme, penso eu... xD

Bom fim-de-semana!!

Fragmentos Betty Martins disse...

Olá Eduardo


___________imaculadamente










belo




este___________espaço




muitos parabéns_______




obrigada pela visita













volta___________sempre:))






beijO

bFsemana

Gi disse...

Vou colocar lá o teu link
Bom fim de semana
Bj.

Maria P. disse...

Beijinho e boa semana*

fernando disse...

adorei

francisca a. disse...

adorei este conto.élindo

antónio bettencourt disse...

Este conto é deveras bonito!

joysharing inc. disse...

um dos melhores contos que li nos últimos tempos

Paulo F disse...

nah tinha lido este......tah mesmo fixe.........tassebem

zeit disse...

conto admirável!

insectosáurio disse...

reli tudo devagar porque é muito bom

cleopata disse...

adorei o conto e esta canção dos dire straits fica bem e torna o final ainda mais bonito

nome para quê? disse...

adorei este

Lua do Rio disse...

está um show

\\ in out // disse...

é o meu preferido do que li até agora --- fabuloso

SuperDaddy disse...

fantástico
gostei muito

acid matrix disse...

muito bom

loura QB disse...

este conto está uma maravilha!!!!

Ave Rara disse...

MUITO BOM!

sem rumo.......... disse...

invulgarmente bom

borboleta79 disse...

que lindo!

Zeca Trigo disse...

belo conto

Violeta disse...

lindo!

(o nome da) rosa disse...

perdi-me aqui...
muito, muito, muito belo.

sem rumo.......... disse...

belo!

Rei Gonzo disse...

muito muito bom

pausa disse...

absolutamente belo.

coco disse...

este conto aqui é super bom
valeu

mosca felizzzzz disse...

muito bom!!!!!
ZZzzzZZzzz