O poeta do digital voice recorder
Tem uma memória excelente.
Alguns dizem até que é prodigiosa e mágica, pelo espanto que pode causar.
Contam-se histórias de como narrou as cores e os factos mais relevantes do baptizado da irmã, tinha ele quase dois anos de idade. Ou da forma como se lembrou dos sinais que o ombro esquerdo da sua amada teria quando nascesse e os apontou um a um, numa noite brilhante de verão, designando a constelação escolhida com o nome que a menina viria a transportar. [Mais tarde, quando questionado sobre tamanha precisão, disse que a memória tem muito a ver com o amor e só um pouco com o tempo, nada havendo de transcendente nesse episódio.]
Às vezes, nos dias em que está mais falador ou com o coração aquecido pelo vinho da felicidade, relata passagens do nascimento de uma criança, dum voo perigoso de um pássaro anónimo, do gemido que a terra faz quando a neve tapa o sol ou da canção de uma onda naufragada num qualquer mar sumido, com facilidade e minúcia perturbadoras.
Foi com surpresa que o encontrei sentado numa esplanada a falar para o que parecia ser um gravador de voz digital. Parou, continuou, parou outra vez. Sacudiu o cabelo para trás com um torcer brusco do pescoço e agarrou-se à sua velha argola puxando a orelha com tal intensidade que receei vê-lo cair da cadeira. Nem o mar, lá atrás, fazia tantos esgares. As suas feições variavam entre uma eventual extrema satisfação e um provável quase desespero enquanto ia carregando agitadamente nos botões do pequeno aparelho.
Talvez tivesse tocado por engano no de pausa porque de repente fez uma cara de menino atrapalhado e descobriu o meu olhar curioso. Acenou-me um sorriso e fez um gesto rápido convidando-me a aproximar.
Conhecemo-nos e somos amigos há muito. Não precisamos trocar cumprimentos formais, nem falar de tempos gastos ou das últimas novidades do mundo e dos homens para nos sentirmos confortáveis. Nunca tivemos necessidade de pôr a amizade em dia. Nasceu quando nos conhecemos e continuará assim, existindo ao sabor dos dias e ao acaso das noites, como um rio que não se preocupa com a paisagem para lá do próximo meandro e olha contente para as margens actuais porque o destino é agora.
Esqueci-me de contar que o meu amigo escreve. A poesia é o seu forte, dizem. Ele não se considera escritor e eu, como seu amigo, respeito-lhe a vontade e chamo-o apenas de artesão de impressões. Refere-se a essa actividade só a espaços, quando partilha pormenores do que sente nos momentos em que nele as palavras desenham aromas e cores. Um dia disse-me que escrever é apenas emprestar música a esses instantes e usufruir da melodia. Eu aprendo muito com o meu amigo e acho que o percebo. Daí, raramente falamos disso.
Fui ter com ele e não contive a curiosidade. Perguntei-lhe porque usava aquele dispositivo e de uma forma tão inquieta. Afinal, era senhor de uma memória intemporal, por certo seria dispensável.
Sorriu-me e depois ficou muito sério. Respondeu que o comprara porque se esqueceu de registar durante toda uma semana os poemas que vivem dentro de si e tinha encontrado a sua mulher e amante de sempre muito triste, na noite anterior. Sentiu-se culpado porque temia que essa fosse a causa dos seus belos olhos castanhos estarem tão pequeninos.
Estava assustado, o meu amigo. Achava que podia ter a memória cansada. O gravador que descobriu enquanto deambulava pelas ruas, tentando esquecer qualquer lembrança da falha de memória, trouxera-lhe algum conforto e a esperança de superar aquilo que ele receava ter sido um primeiro ataque de alzheimer.
Prometi-lhe que a partir daí iria telefonar duas vezes por semana, durante toda a vida, para o recordar de escrever a poesia que o seu amor aguarda, não fosse ele esquecer-se de mudar as pilhas. Pareceu gostar da ideia. Vi o começo de um assobio nos seus olhos.
Separámo-nos depois de o lembrar de pagar as cervejas. Ele riu, com um gargalhar de criança já despreocupada. E disse obrigado enquanto esticava as pernas e espreguiçava os braços todos para trás. [Obrigado, eu. É bom sossegar um amigo.]
De longe, quando me virei, vi-o na praia bem perto do mar. Não distingui nenhum gravador de voz digital nas suas mãos mas pude ver que observava os saltos de um golfinho azul para lá do rebentar das ondas e estou certo que um dia vou saber o que ele lhe estava a contar.
58 impressões:
O seu melhor post na minha opinião.Excelente
uma história linda
LOL quero mais
bom fds
É bom ter assim amigos como tu...que decansam :)
Beijo e bom fim-de-semana
ps - Este post é maravilhoso!
eh pah isto estah muita bom.....tambem kero mais........tassebem
é mesmo bom sossegar e ser sossegada por ti.
beijo(s):
http://www.youtube.com/watch?v=8ydQ6NfxjbQ
sobre o post falamos depois :)
a gente já está habituada a chegar e quando há post novo ser surpreendido...não é todos os dias mas vale sempre a pena dar uma espreitadela.quero desejar um bom fim de semana e dizer que eu e os meus 2 colegas aqui do escritório agradecemos muito o seu conto.é muito bom e uma espécie de sossego para o fim do dia.
abraços
fascinante
ainda diz que não gosta de prosa como afirmou num post antigo? hahahaha
bom fim de semana
não sei dizer quanto gostei deste post
why worry quando se tem amigos assim.abraço até breve
Deleitei-me a ler este post como uma criança se deleita a olhar e ouvir atentamente o contador de histórias. Cada palavra, virgula, foram absorvidos pela minha deliciada atenção. Obrigada, mesmo mesmo. Um beijo.*
não sei se gosto mais da tua poesia ou da tua prosa...que bom que é ler português assim
bom fim de semana!
i was at this concert...long time back...good memories
have a good one Jai
take care mate
lindíssimo obrigada :0)
Muito bem.
Bom fim-de-semana.
Beijinhos com cores de Maio:)
Adoro contos e este é uma verdadeira pérola.
Um excelente fim de semana!
Artesão de impressões é uma expressão feliz e um nome que te quadra muito bem. Nunca largues esse ofício. Gostei MUITO.
sou ainda novo por aqui mas já fiquei fan depois de ler este conto.espero ter o prazer de ler mais.
magnífico!
abraços
para ler e reler devagar...demasiado bom para comentar.abrço
ao tempo que não ouvia isto...
Entre os limites da realidade e da vstidao da memória, entre um recanto poético da nossa alma e o sonho do que queremos ver "acontecido" nascem assim palavras belas como o salto de um golfinho, inconstantes na sua forma de se dar...mas sempre fiéis à imagem poética que nos ofereces.
Simplesmente belo. De facto, a Natureza oferece-nos VERDADE.
Beijos aqui da su!
que bom começar a semana com amigos que nos sossegam
xoxoxo
Muito lindo, muito belo, cheio de encanto...
Vim atrás do aventureiro
que se atirou na minha
jangada, dar-lhe um jinho
e deixar um obrigada...
Da, laura, nina das résteas...nina não, dos 55...
Belíssimo texto, Eduardo!
Os receios do teu amigo de estar a perder a memória devem ser infundados, embora às vezes a idade atrapalhe um pouco os neurónios dela encarregues. E outras vezes, é precisamente o contrário, parece que com o passar dos anos a pessoa vai alimentando cada vez mais o seu cérebro com novas histórias e imagens, como se ele fosse uma enorme biblioteca...
Fizeste bem em sossegar o teu amigo!
Um dia BOM para ti!
mais um belo e excelente texto.
uma boa semana.
é incrivel como consegue meter as palavras nso sitios certos para dar estas frases...
e a musica, obrigado, muito obrigaod
Bela partilha.Tomara ter muitos ainda para nos presentear.
Bom retornar...e a música soube bem.
Bons sonhos pra ti.
Obrigada pela visita e pelas palavras. Vir aqui retribuir-te a gentileza foi uma mais valia para mim. Encantou-me o teu texto. Esta memória digital . Quantas vezes não nos esquecemos de pequenas coisas que nos fizeram felizes. Momentos. Quantos textos, quantos poemas poderiam ter lugar. Não há memória , há um auxiliar :)
Um beijinho, volta sempre.
Noite feliz
excelente descoberta
vou ficar atento depois de tudo o que li
Tudo aqui se enquadra perfeitamente,palavras,imagens...um rnquadramento perfeito.
Bjs Zita
Podes linkar sim,também o vou fazer porque assim torna-se fácil os caminhos..
Bom fim de semana
Bjs Zita
AH! agora percebi. já me estava a assustar...eheh. obrigada :D
a pessoa que dizia 'isso agora não interessa nada' era a Teresa Guilherme, penso eu... xD
Bom fim-de-semana!!
Olá Eduardo
___________imaculadamente
belo
este___________espaço
muitos parabéns_______
obrigada pela visita
volta___________sempre:))
beijO
bFsemana
Vou colocar lá o teu link
Bom fim de semana
Bj.
Beijinho e boa semana*
adorei
adorei este conto.élindo
Este conto é deveras bonito!
um dos melhores contos que li nos últimos tempos
nah tinha lido este......tah mesmo fixe.........tassebem
conto admirável!
reli tudo devagar porque é muito bom
adorei o conto e esta canção dos dire straits fica bem e torna o final ainda mais bonito
adorei este
está um show
é o meu preferido do que li até agora --- fabuloso
fantástico
gostei muito
muito bom
este conto está uma maravilha!!!!
MUITO BOM!
invulgarmente bom
que lindo!
belo conto
lindo!
perdi-me aqui...
muito, muito, muito belo.
belo!
muito muito bom
absolutamente belo.
este conto aqui é super bom
valeu
muito bom!!!!!
ZZzzzZZzzz
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