19/12/2007

João Fatalista (versão blogante - parte II)

João Fatalista começou a difundir-se ao mundo.

Todos os seus textos eram publicados em seis das línguas mais faladas com a colaboração de algumas pupilas tradutoras – uma espécie de abelhas operárias do seu fel – que tinham os nomes num destaque da página, em letras pequeninas e coradas de discretas, parecendo ilhotas à volta da fotografia oceânica de seu mentor.

Em poucos meses, o seu blog tornou-se a referência de pensantes à procura de ideias, a Varanasi de políticos ocidentais, a Jerusalém de ateus, a Las Vegas de religiosos, enfim, a via verde de todo o humano com pavor aos penhascos das estradas da info-exclusão.

Lá, no “A Verdade É Amarga”, deixava todo o seu azedume gotejar com uma lógica resistente a qualquer tsunami filosófico e, cada vez mais amiúde, o seu amargor transmutava-se em veneno letal, numa alquimia ofídia dominada apenas por cérebros raros, hermafroditas, que se masturbam nas próprias ideias para procriar nirvanas mentais, plenos no desdém, absolutos no infinito do seu umbigo.

Com parcimónia mas sem misericórdia, com ou sem justificação, distribuía acres bofetadas em profissionais da argumentação, industriais da política, sindicalistas do clero, comerciantes do ilustre. Com vigor igual. Sem olhar a qual.

[O amargo era o seu único amigo]

João Castello Delmonte Fatalista era lido, era seguido, era temido.

As suas audiências aumentavam ao som minimalista de 10 a 20 cliques por segundo e os opinion makers de renome tremiam com o abrupto frio estatístico que se instalara nas suas paróquias. Outrora ungidos, começaram a sentir-se ovelhas sem rebanho, clérigos sem fiéis, e ainda tinham que ler blasfémias dos poucos que passavam para saudar e investigar o mofo.

“O J.F. já disse isso há dois meses n’ A Verdade é Amarga… Quer o link para o arquivo dele?” ou “Este blog já era, todos sabemos isso, mas acho patético o seu desabafo de querer encerrá-lo para sempre. Deixe de ser fatalista!” — eram exemplos bondosos das parcas
esmolas atiradas para o copo da sua presente expiação. Rodada após rodada da saudade de gordos e respeitosos dízimos, a classe dos formadores de opinião acabou por unir-se no cálice do mesmo patrono, bebendo da mesma fé: o alcoolismo sabático e ortodoxo.

O sucesso era estrondoso, a competição desqualificada por já acusar doping, mas não abrandava sequer para degustar dissabores alheios ou contar o número dos que, de uma ou outra forma, tinha afectado para sempre.

Nada o demovia. Primeiros-ministros descobrindo que ‘ex‘ seria o mantra a recitar até ao fim da vida, cardeais confessando simpatia (em certos momentos consagrados à ciberleitura) por personalidades como Tomás de Torquemada ou Usāmah Bin Lādin, feministas jurando que a testosterona foi a primeira hormona criada após o big bang, generais lendo Bakounin no local de trabalho e envergando t-shirts de Gandhi a fumar cannabis, açougueiros ameaçando imolarem-se dentro de uma salada gigantesca de agriões — não o perturbavam, não tropeçavam o seu desígnio.

Passados dois anos, publicava tanto que o Google teve que criar o 'Índice JF', o Dow Jones da blogosfera. Os molhos das suas ideias já batiam em uso a mostarda da McDonald's e o ketchup da Heinz mas, mesmo assim, recrutou mais duas discípulas para darem novos paladares aos seus vinagretes, agora com travos de hindi e mandarim.

Lembrava os meses pelo número de posts e os dias pela quantidade de ataques de pânico nas vidas dos que ousaram prescindir dele e apareciam agora na TV, balbuciando choros, lacrimejando desculpas, assoando súplicas de sossego.

[A azia era a sua única transigência]



continua algures neste ano ou no outro, ao cair de um post.
dias bons para todos.



The Album Leaf - On Your Way

11/12/2007

João Fatalista (versão blogante - parte I)

João Fatalista era um homem azedo.

Não se sabia porquê.
Sempre fora assim.

A sua desmedida cultura, associada a uma frígida disciplina dos sentidos, permitia-lhe dissertar com sagacidade e destreza sobre a trajectória incerta dum electrão, a sexualidade dos elefantes por altura das monções ou Nietzsche e a estrutura do seu pensamento se tivesse casado.

Era um perorador nato, empolgante, senhor de um léxico capaz de baixar a auto-estima dos melhores dicionários clássicos, manuais de física quântica e enciclopédias de filosofia védica, por atacado.

Durante as circunvoluções das suas intervenções profissionais e sociais, costumava arrancar olés interiores aos discentes e assistentes com a facilidade com que um grande toureiro torneia, como se fossem rosas, os cornos de um touro bravo. No final, recolhia as orelhas ainda coladas às suas palavras e acrescentava à obesa colecção os inúmeros rabos que não hesitavam em dar-se, num salto, para o ovacionar em triunfo.

Há muitos anos que os oráculos da ciência política profetizavam que ele viria a ser, cedo ou tarde, o ministro por quem a república escrevera uma ode ainda por cantar e uma epopeia até agora órfã de herói. Garantiam mesmo que a sua obra seria o sólido galho de partida duma ave predestinada a esplendorosas migrações e que desceria depois onde fosse preciso, como um avatar planetário, para gratidão dos povos.

É verdade que costumavam divergir, aqui e ali, no nome das pastas que apontavam como aquecimento prévio para a sua ascensão plena. Também é um facto que reduziram a pouco mais de meia dúzia os balões de ar quente que João Fatalista – um cérebro global – poderia vir a usar na sua viagem.

Mas não era isso, porém, que causava a falha contínua de todas as suas predições. Mês após ano. O motivo, mais frio e simples, era outro: nunca o chamavam. Dos senhores das torres de controlo do poder jamais chegava um convite. Ano após mês.

Se nos aeroportos da política era assim, nos relvados do saber não era muito diferente: a Sorbonne, Oxford e Harvard já o insinuavam há várias temporadas mas ele, por mistério ou fatalidade, acabava sempre a jogar em casa.

Os seus pressagiados voos até já eram altos - muitas vezes quase sentia o respirar da glória nas alturas - mas acabavam sempre num flácido planar. Jamais adquiriam a excitação final, o impulso que lhe permitiria ejacular-se da gravidade e deixar para trás os efémeros holofotes dos mortais para que, já aliviado do peso do crânio, pudesse expandir a sua mente brilhante rumo ao sol do eterno.

[O azedume subia]

Já que as asas lhe traziam penas e os céus lhe encolhiam os ombros, João pousou a atenção na Terra e planeou torná-la a cortesã insaciável dos seus desejos agora rasteiros. Pensou-a como uma virgem que o aguardava com a impaciência já prostrada no ninho aberto das coxas, a noiva que desde o princípio dos tempos jazia abandonada nos degraus do altar onde implorava pela evolução, onde morreria se não fosse sua esposa.

Decidido, encarou a missão. Sem hesitações na vitória.
Inspirou o despeito a que o ar lhe cheirava. Coçou o ego para a comichão sangrar. Salivou vinagre na boca cerrada. Olhou o futuro estertor dos que ouviu ignorá-lo. E expirou uma estratégia.

Assim nasceu “A Verdade É Amarga”.

Blog de opinião.
Por João Castello Delmonte Fatalista.

[A acidez aterrava]



continua por si num próximo post perto de mim… ou algo assim.
dias bons para todos.


Andrew Bird – Spare-Ohs