Encontro de café
É um homem estranho mas de trato fácil. Um pouco críptico também. Sobretudo quando divaga sobre escuros que atravessou: fala com carinho duma lanterna que traz no bolso da alma e que nunca o deixa ficar mal.
Conheci-lhe vários ofícios e projectos. Contou-me que no último ano tinha vivido seis florestas a leste de Raipur, onde os tigres ainda são selvagens e as mulheres dançam com doçura. Sem fazer nada por uns tempos. Para ganhar a vida.
No outro dia, descobri-o amo de uma irritação súbita, quando o abordaram com pensamentos filosóficos e religiosos. Aquietou-os a todos primeiro com um bocejo, tsunamizou-os de seguida com a rapidez de um espirro e limpou depois os restos com um assobio e uma proposta acariciada no nariz:
“Porque vestem Deus com camisolas de cores diferentes? Isso não faz sentido nenhum e os daltónicos vão ficar confusos. Em vez de tantos abafos, porque não pomos a nu o Glorioso, o que vive sempre na Luz? O coração diz-me que o Benfica vai fazer uma época para recordar com religiosidade. Não há kants nem schopenhauers que me demovam a fé. Quem quer começar a debater a minha crença? Vá lá, esqueçamos templos e ideias carentes de banho e depilação. Brinquemos a inocentes zoroastrozinhos do futebol. Sejamos humanos, porra!”
Perante a mudez dos olhares estrábicos e enevoados, e por ter compaixão e respeito nas estatísticas da sua personalidade, acabou por pedir chá de menta com pastéis de belém e... vinho com presunto e bolinhos de bacalhau. Aparentemente, para possibilitar distintos arrotos gastronómicos consoante os hálitos das crenças dos seus interlocutores. Ou era apenas piedade pelas expressões burlescas que faziam e pareciam contrariar a suposta clareza acrescida de quem acaba de adquirir mais um doutoramento. O nome que se lhes lia nas entrelinhas das testas também podia ser a razão: "Metafísica Perplexa Súbita".
“Quero suavizar-lhes uma dispensável sensação de vazio. Antes de tudo, são o coração e o estômago que precisamos de ter cheios. Só depois o ser humano se deve atrever a pensar, sem imitar os papagaios. E quando o coração está fechado, conforta-se-lhes o tubo digestivo, não achas?”, esclareceu-me, à socapa, com um riso leve.
“Ah! Como disseste que precisas ir embora e já vais lanchado de sorrisos, pedi para ti só mais um café e paciência. É que gostava que levasses isto e depois me desses uma opinião. Sabes, houve um tipo que há uns dias me chamou de poeta lírico quando estava a mostrar uns escritos feitos lá por Chhattisgarh. Até senti a musa em mim a ranger os dentes... E respondi-lhe!”, piscou-me, enquanto me metia algo no bolso da camisa.
No dia seguinte li o papel de arroz.
Cozinhava assim:
canção para um pensador ou muitos
Páááá!!
estou cansado de intelectos
Páááá!!
tão cheiinho de opiniões
Páááá!!
parecem farturas
azeitadas de perspectivas
e filosofias respectivas
mortas como ovelhas maduras e frias
Páááá!!
pára de emitir neurónios...
afasta-me o teu pensar...
és só uma mente
que tem isso de diferente?
Páááá!!
e não é ecológico
é demagógico
é fodilhógico até
Páááá!!
da viagem quero o sentir
quero o alento
não o talento
Páááá!!
leva ideia a ideia
daqui para fora
leva a tua vida feia
e vai embora
sem demora
Páááá!!
agora ergue o rabo
para o meu tédio avançar
Páááá!!
levemos o pontapé a cabo
para a pureza do ar
CATRAPáááá!!
foste
Blaaaah!!
Não conheço o pensador, o dantas, em questão. Mas é sortudo.
levemos o pontapé a cabo
para a pureza do ar
CATRAPáááá!!
foste
Blaaaah!!
Não conheço o pensador, o dantas, em questão. Mas é sortudo.
Não é por acaso que o meu quase despeitado amigo e os tigres se respeitam...
Lendo bem, talvez deixe passar umas semanas antes de lhe dizer o que acho.
Lendo bem, talvez deixe passar umas semanas antes de lhe dizer o que acho.
Primeiro vou pedir para ler os escritos "líricos" em questão. Fiquei curioso e ganho tempo.
Depois dou uma opinião do conjunto.
Mais global e sentida. Menos estreita e pensada.
Uns dias bons para todos!
Sheila Chandra - Ever So Lonely / Eyes / Ocean