31/05/2008

Encontro de café

É um homem estranho mas de trato fácil. Um pouco críptico também. Sobretudo quando divaga sobre escuros que atravessou: fala com carinho duma lanterna que traz no bolso da alma e que nunca o deixa ficar mal.

Conheci-lhe vários ofícios e projectos. Contou-me que no último ano tinha vivido seis florestas a leste de Raipur, onde os tigres ainda são selvagens e as mulheres dançam com doçura. Sem fazer nada por uns tempos. Para ganhar a vida.

No outro dia, descobri-o amo de uma irritação súbita, quando o abordaram com pensamentos filosóficos e religiosos. Aquietou-os a todos primeiro com um bocejo, tsunamizou-os de seguida com a rapidez de um espirro e limpou depois os restos com um assobio e uma proposta acariciada no nariz:

“Porque vestem Deus com camisolas de cores diferentes? Isso não faz sentido nenhum e os daltónicos vão ficar confusos. Em vez de tantos abafos, porque não pomos a nu o Glorioso, o que vive sempre na Luz? O coração diz-me que o Benfica vai fazer uma época para recordar com religiosidade. Não há kants nem schopenhauers que me demovam a fé. Quem quer começar a debater a minha crença? Vá lá, esqueçamos templos e ideias carentes de banho e depilação. Brinquemos a inocentes zoroastrozinhos do futebol. Sejamos humanos, porra!”

Perante a mudez dos olhares estrábicos e enevoados, e por ter compaixão e respeito nas estatísticas da sua personalidade, acabou por pedir chá de menta com pastéis de belém e... vinho com presunto e bolinhos de bacalhau. Aparentemente, para possibilitar distintos arrotos gastronómicos consoante os hálitos das crenças dos seus interlocutores. Ou era apenas piedade pelas expressões burlescas que faziam e pareciam contrariar a suposta clareza acrescida de quem acaba de adquirir mais um doutoramento. O nome que se lhes lia nas entrelinhas das testas também podia ser a razão: "Metafísica Perplexa Súbita".

“Quero suavizar-lhes uma dispensável sensação de vazio. Antes de tudo, são o coração e o estômago que precisamos de ter cheios. Só depois o ser humano se deve atrever a pensar, sem imitar os papagaios. E quando o coração está fechado, conforta-se-lhes o tubo digestivo, não achas?”, esclareceu-me, à socapa, com um riso leve.

“Ah! Como disseste que precisas ir embora e já vais lanchado de sorrisos, pedi para ti só mais um café e paciência. É que gostava que levasses isto e depois me desses uma opinião. Sabes, houve um tipo que há uns dias me chamou de poeta lírico quando estava a mostrar uns escritos feitos lá por Chhattisgarh. Até senti a musa em mim a ranger os dentes... E respondi-lhe!”, piscou-me, enquanto me metia algo no bolso da camisa.


No dia seguinte li o papel de arroz.
Cozinhava assim:

canção para um pensador ou muitos


Páááá!!

estou cansado de intelectos
Páááá!!

tão cheiinho de opiniões
Páááá!!

parecem farturas
azeitadas de perspectivas
e filosofias respectivas

mortas como ovelhas maduras e frias
Páááá!!

pára de emitir neurónios...

afasta-me o teu pensar...

és só uma mente

que tem isso de diferente?
Páááá!!

e não é ecológico
é demagógico

é fodilhógico até
Páááá!!

da viagem quero o sentir
quero o alento

não o talento
Páááá!!

leva ideia a ideia
daqui para fora
leva a tua vida feia
e vai embora

sem demora
Páááá!!

agora ergue o rabo
para o meu tédio avançar
Páááá!!

levemos o pontapé a cabo
para a pureza do ar
CATRAPáááá!!


foste
Blaaaah!!


Não conheço o pensador, o dantas, em questão. Mas é sortudo.
Não é por acaso que o meu quase despeitado amigo e os tigres se respeitam...

Lendo bem, talvez deixe passar umas semanas antes de lhe dizer o que acho.

Primeiro vou pedir para ler os escritos "líricos" em questão. Fiquei curioso e ganho tempo.

Depois dou uma opinião do conjunto.
Mais global e sentida. Menos estreita e pensada.




Uns dias bons para todos!

Sheila Chandra - Ever So Lonely / Eyes / Ocean